CHICANEIRA

Não aos tabus!

Saturday, May 21, 2005

O autocarro
Tudo começou quando foste despedido. Ou assinavas um acordo de rescisão, levando ainda algum dinheiro, ou esperavas que o teu patrão sumisse com alguma mercadoria do armazém e imputasse todas as culpas a ti. Assim ao menos levaste algum dinheiro e uma carta recomendação para as ocasiões. Mas os tempos eram das «vacas magras» e previa-se que não irias arranjar nenhum emprego e o dinheiro da indemnização iria depressa desparecer. Porém, tiveste uma das tuas ideias luminosas. Enquanto me abraçavas e me tinhas nos teus braços, e afirmavas que querias que eu estivesse sempre junto de ti, para onde quer que tu fosses, disseste também: vamos comprar um autocarro e viajar pelo país inteiro.
E assim foi. Despedi-me do meu emprego «mixurica», não sei antes fazer o «choradinho» à minha patroa. De que te amava muito e que me tinhas pedido tudo por tudo para te acompanhar neste novo projecto. E que eu tinha medo de te perder se não embarcasse contigo nesta nova aventura. Que era uma espécie de salvação para o nosso casamento. A nossa salvação. Mas creio que ela não acreditou muito na história. Ela sempre me viu com um ar feliz e contente. Leve. Tudo por causa de ti Ricardo. O meu marido e maridão. Mas acho que ela gostava de mim. E ainda gosta. Por isso deu-me algum dinheirito a mais daquilo que me era devido, bem como um abraço sentido e disse: «Continua a ser feliz».
Colocámos então as nossas poupanças de lado, e acrescentámos mais algumas ao vender a casa que tu herdaste de um tio solteiro, que teve a infelicidade de não deixar filhos ou pais, tendo apenas te deixado a ti como sobrinho, e esquecido de fazer o testamento para a namorada da altura, e começámos a procurar um autocarro em segunda mão. Comprámos um Mercedes 0580 15RH-A TRAVEGO. Sabem como é o autocarro? Eu também não sabia. Até ter um. E ter experimentado todos os assentos, ter sentido com ele cada buraco da estrada, contactado através dele com diversas pessoas, de todos os cantos do país, e mesmo de diversos cantos deste mundo.
Era um belo autocarro do ano de 2002, de pintura metalizada amarela, 58 lugares, assentos reclináveis e confortáveis, com sistema ABS, Rádio, armário frigorifico e climatização, enfim, um manancial de opções. Tinha também televisão, um video gravador, um microfone para falar aos passageiros. Só não tinha uma casa de banho. Por isso, quando o autocarro estava em andamento, os passageiros mais aflitos e desavergonhados dirigiam-se a mim e pediam-me para dar uma vista de olhos no mato, esticar as pernas ou mesmo desanuviar o espirito.
São tantas e tantas histórias relacionadas com aquele autocarro. Que fazem parte da nossa história. Minha e tua Ricardo. Tu eras o motorista. Já tinhas a carta de condução que te habilitava. Eu desenrascava-me na comunicação com os passageiros e na escolha dos roteiros e na divulgação dos mesmos, bem como nos contactos com os museus, restaurantes, pensões e residenciais. Depressa deixou de haver um fim de semana livre e lá íamos nós por este Portugal fora, com o autocarro cheio e ávido de conhecimento, de aventura, de dias diferentes.
Mas a aventura foi bonita por tua causa. Sempre adorei a forma como me olhavas. Eu vestia vestidos simples mas que eram ingenuamente indecentes. Decotados e ainda por cima com um botão inadvertidamente desabotoado, para deixar antever a curvatura do meu peito. As minhas pernas morenas de que tanto me orgulhava, eram despidas muitas vezes quando o vestido subia, ou para colocar uma mala de um passageiro ou para me baixar para apanhar o que quer que fosse. E tu sempre atento. Ah como eu enlouquecia com o teu olhar! Mas tu não eras nada ciumento. Só o eras para me agradar. Eu flirtava com tudo quanto era passageiro macho, sempre à tua frente. Só nessa altura é que tinha piada. E tu fingias-te indignado, quando no fundo eu sabia que estavas divertido. Que eu era tua. Mesmo que quisesse fingir que era livre. Pelo retrovisor do nosso Lucas Manuel (o autocarro) foram trocados olhares e desejos, que eram concretizados à noite, mesmo no Lucas, em todos os seus assentos estreados, ou no próprio chão frio.
Recordo-me com saudade de tantos episódios que dói. Dói cá dentro. Inclusive das nossas discussões e da harmonia posterior. Procurávamos sempre excerder-nos e exceder-se um ao outro. Contigo tudo era um desafio, tudo era novo, mas seguro. Qualquer imprevisto que existisse ou aparecesse eu encarava de frente. Qualquer um. Sentia-me uma mulher corajosa. Capaz de tudo. Desde que estivesses ao meu lado. Até que o Lucas II resolveu querer nascer. Um pimpolho lindo que ressalta à vista de todos os meus vestidos. Crescia a cada momento que passava. Um lutador que já lutava dentro do meu ventre com todos os meus ossos e com todos os meus orgãos. Dando fortes pontapés cada vez que a tua mão se chegava ao pé do meu ventre. Ele já te sentia. Mesmo lá dentro.
O Lucas II foi tão esperado por nós. Já o imaginávamos a fazer mil viagens no Lucas Manuel, e a contactar com diversas pessoas, que diriam que o Lucas II era um lindo menino, adorável, apesar de irrequieto e traquinas. Mas após o parto iríamos estar fora da estrada três meses. Já tínhamos colocado as nossas poupanças de lado para isso. Ficaríamos perto de Vila Real de Santo António, em Manta Rota, a viver perto do teu irmão Pedro que ali tinha arranjado a casa dos caseiros só para nós. Poderíamos ir à praia logo de manhazinha, ou só á tardinha, apresentar o nosso pimpolho ao horizonte, e mostrar-lhe que não existem limites.
Mas desde cedo o Lucas conheceu o pior dos limites. Viu-me partir. Como me dói tê-lo abandonado. Sei que não foi assim porque não fui eu que o decidi, mas sei que é isso que ele irá pensar um dia. Mas depois esquecer. Pelo menos a dor. E compreender. Sei que o Lucas será um excelente ser humano. Já o é. E é com dor e ao mesmo tempo orgulho que o vejo despido, usando apenas uns calções, de 4 anos, cabelo farto e loiro, sentado ao colo do pai, e a conduzir o Lucas Manuel. Pelo menos o pai fá-lo pensar que é ele que está a conduzir o Lucas Manuel. Está um lindo dia de Verão e os dois riem que nem perdidos. Felizes. Os meus dois grandes homens. Que apenas posso ver de longe. E ausente.
Ah como eu fui feliz.

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